Em um mundo cinza, Ele reluta em nadar contra o oceano de rostos vazios, teimando em tentar, por algumas vezes, algum contato dentro de um sonho que, com certeza, não era Seu. Pula de aposento a aposento e a total indiferença lança afiadas farpas ao Seu já tão cicatrizado coração.
Por um segundo, um antigo rosto conhecido desperta Sua esperança com um sorriso, mesmo que visto de relance. Ele sente o fiapo de calor e segue em frente, resoluto em chegar aonde nem Ele sabe.
De repente, sente, próximo de Si, uma morada antiga: o começo de uma Música; e Ele se agarra a ela de olhos fechados, como um náufrago a uma tábua flutuante, mesmo com aquela vozinha ao fundo da cabeça gritando baixinho: “não adianta!”.
Abrindo novamente os olhos, avista um rosto conhecido arriscando algumas notas em um piano, tentando seguir as orientações de uma tutora rígida. A pequena, mas única sensação de refúgio há séculos liberta nEle algo que estava desesperadamente tentando sair, e, como uma fissura em uma represa, Sua boca se abre para soltar uma voz ancestral que nem mesmo ele já reconhecia.
A Melodia passa por Sua laringe como leite quente em uma noite fria, fazendo todo o Seu corpo brilhar com um esforço tão antigo, porém ainda tão familiar. Regressara ao Seu lar (?) e, pouco a pouco, o cinza ia perdendo lugar para a luz, que atraia rostos acolhedores como insetos buscando desesperadamente qualquer saída de suas escuras realidades. Por um breve momento, chegou a sentir suas orelhas criarem pequenas pontas novamente.
Mas o solo logo é quebrado, quando um novo personagem toma um outro microfone, transformando a antiga Canção em um dueto moderno, cheio de lugares comuns e notas de conforto. Ele conhecia esse novo rosto, apesar de nunca tê-lo visto antes, e sua memória dizia que ele era confiável, ao mesmo tempo que tentava calar Sua intuição, a qual insistia em focar no estranho brilho no fundo daqueles olhos confiantes.
A Canção transforma-se em batida e o acolhimento inicial em dança frenética. Sem forças para ganhar de seu corpo, Ele também se entrega àquela dança primordial, porém com uma mente que insiste em prestar atenção na letra da música, a qual traz, em forma de farsa, a estória de um buscador que é ajudado pela Morte, cantada como uma amiga injustiçada pelo medo.
A batida e a dança intensificam-se e, deixando-se levar pelo êxtase confortável e acalentador, Ele se entrega à energia criada, como se quisesse se desintegrar nela…
Seus olhos, então, se abrem e Ele se vê numa cama, doente. Mas ele não consegue ficar triste, pois o seu companheiro do dueto, sentado do lado direito de sua cama, mantém um grande sorriso no rosto, como se dissesse que tudo aquilo fosse apenas mais uma Peça. Nesse estado tranquilo, ele olha para o outro lado da cama e vislumbra um novo personagem que até então estava oculto e que se aproxima e se ajoelha do lado esquerdo da cama.
O mais novo personagem, sóbrio e alado, olha em Seu olho com o rigor e o carinho de um antigo e preocupado amigo, congela toda a cena e O chama por um nome já esquecido, por três vezes.
Nesse momento, sua visão se abre e ele pode ver novamente todas as cores da realidade. Olhando para a sua direita, o rosto acolhedor do companheiro do dueto é substituído por o de um demônio faminto, com um sorriso largo de dentes afiados, como se prestes a se fartar da caça tão pacientemente ludibriada.
Seu coração pula forte em seu peito e ele se força a acordar. Por uma, duas, três vezes… … … e
…
Esfregando os olhos, sinto a antiga energia alimentar novamente cada membro do meu corpo. Chacoalhando a ferrugem das juntas, sinto novamente o familiar peso da armadura e da capa nos ombros – está tudo aqui, mesmo que sem todo o brilho de antes.
Do meu lado, minha fiel, mas tão surrada, companheira de viagem, com o grisalho da pelagem já sobrepondo o vistoso laranja de outrora. Como eu, também mudara: a ataraxia, antes selvagem e natural, tornada mais veterana, cicatrizada. No momento, ela me ignora – compreensivelmente irritada com a espera e a preocupação. Mas nosso cativar é antigo e “sei” que, com o tempo, voltaremos a correr como um só, em quatro patas. (será?)
Ao longe, o monge bigodudo novamente cruza o Caminho, buscando seguir a si mesmo. Sorrio internamente, pois sei que, mesmo tendo caído forte dessa vez, quase me perdendo completamente, estou novamente na Estrada.
Com um pulo e um calor renovado no coração, corro ao seu encontro para, novamente, como uma pipa, ser alçado da difícil inércia do solo ao meu próprio vôo nas alturas! Ou, como o velho gostava de dizer: do macaco ao super-homem!
…
E, no fundo do meu coração, ainda está guardada a lição do bilhete, bem como a compreensão de que a perigosa jornada no mundo cinza trouxe consigo um segredo que, de outro modo, me seria inalcançável:
Naquele pesado mundo, que tragava, como um denso buraco negro, todas as cores à sua volta, Ele havia encontrado a sua estrelinha e ela brilhava com a força de mil sóis, tal como um sonho colorido para um sonhador que não quer despertar, por ainda não ter compreendido que ele mesmo e todo o mundo desperto são feitos da mesma matéria dos sonhos.
O sofista voltou.